Transições alimentares justas a partir da base no Brasil e no Reino Unido

Transições alimentares justas a partir da base no Brasil e no Reino Unido

Introdução

Os esforços diferenciados de organizações de advocacia para a justica alimentar em diferentes partes do mundo convergem em torno de desafios semelhantes e valores comuns. Para além do potencial para aprendizado mútuo entre estas organizações, a união das suas experiências distintas oferece oportunidades para amplificar histórias localizadas de mudança e construir uma narrativa segundo a qual é possível construir sistemas alimentares alternativos a partir da base.

As diferenças socioeconômicas são muitas. Porém, um intercâmbio recente entre organizações locais de advocacia em prol da justiça alimentar revelou que há muito que une suas comunidades urbanas – concretamente, as formas como estas organizações estão criando alternativas ao sistema alimentar dominante que priorizam a inclusão social, a justiça e a integridade ecológica.

Representação gráfica da discussão sobre como criar sistemas alimentares justos, solidários e sustentáveis. Autoria: Bianca Santana, AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia.

Representação gráfica da discussão sobre como criar sistemas alimentares justos, solidários e sustentáveis. Autoria: Bianca Santana, AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia.

Rede “alimento justo”

Este intercâmbio fez parte de uma série de diálogos entre organizações de advocacia com o propósito de refletir sobre transições alimentares justas. Just food? é um projeto de pesquisa-ação, financiado pela British Academy, cujo objetivo é o de estabelecer uma rede de aprendizado mútuo que examine e compare concepções, abordagens e estratégias para avançar com transições justas nos sistemas alimentares em quatro contextos: Brasil, Zâmbia, Serra Leoa e Reino Unido. Os parceiros destes países incluem: AS-PTA no Brasil, Brighton Food Factory no Reino Unido, Green Earth na Serra Leoa e Zambia Land Alliance.

O projeto consiste na realização de oficinas participativas organizadas por estes parceiros em comunidades selecionadas nos locais onde eles normalmente operam. Por meio dessas oficinas, eles exploram com seus pares, bem como com outros atores do sistema alimentar, os significados de uma transição justa e caminhos para melhorar os sistemas alimentares atuais. Os dados coletados nos quatro contextos são depois compartilhados e contrastados pelos membros da rede através de uma série de intercâmbios internacionais. O primeiro destes intercâmbios aconteceu recentemente para refletir sobre a primeira rodada de oficinas locais. Este blog compara especificamente o conteúdo dos diálogos conduzidos pela Brighton Food Factory e AS-PTA em suas respectivas comunidades.

Especificidades locais

Em cada um destes contextos, a discussão sobre transições justas refletiu em grande medida as circunstâncias socioeconômicas e políticas distintas dos dois locais.

Em Brighton, o diálogo destacou essencialmente questões de consumo alimentar. Tópicos de interesse para os participantes da oficina incluíram aspetos sobre o processamento e embalagem de alimentos, sua pegada ecológica, desperdício alimentar e a crescente falta de ligação entre o consumidor e o alimento "real" e sua origem, incluindo, por exemplo, a perda de conhecimento sobre a sazonalidade dos alimentos frescos, como frutas e vegetais. Os participantes refletiram também sobre a influência dos supermercados e dos consumidores no sistema alimentar. Embora a responsabilidade dos consumidores e a ética do consumo tenham sido destacados como forças de mudança, o poder dos grandes supermercados e a falta de regulamentação adequada foram considerados como grande parte do problema.

No Rio de Janeiro, o diálogo colocou a tónica sobre os desafios do atual contexto político para transições justas. Este é um contexto marcado por um regime autoritário populista, pelo desmantelamento gradual de políticas públicas, e pelo aumento da violência e grilagem de terras na periferia da cidade. Perante este quadro, a oficina identificou as iniciativas comunitárias como formas de resistência contra um ambiente hostil e também como expressões de solidariedade entre populações vulneráveis. Debateu-se ainda a necessidade de salvaguardar as funções do Estado e os avanços alcançados nas políticas públicas, apesar da hostilidade do regime político do momento.

Apesar das diferenças e especificidades destes dois contexto, há muito que une o pensamento sobre as transições justas e como as alcançar. Três temas comuns nos diálogos nas duas cidades incluem: a necessidade de reavaliar os alimentos, a oportunidade para conectar injustiças que estão relacionadas, e a importância de manifestações de solidariedade como motores de mudança para um sistema alimentar mais justo.

Reavaliando o alimento

As discussões nas duas cidades destacaram a necessidade da sociedade (e, particularmente, dos jovens) se redescobrir e se reconectar com o alimento. O alimento não diz respeito apenas aquilo que comemos para satisfazer as nossas necessidades biológicas, mas incorpora dimensões sociais, culturais, ecológicos e políticos. Em Brighton, esta ideia foi expressa, por exemplo, como a importância de reaprender a sazonalidade dos alimentos, aprender a preservar alimentos para reduzir o desperdício, e ganhar maior consciência ética sobre as consequências sociais e ecológicas das decisões no consumo. No Rio, durante a pandemia da Covid-19, as hortas comunitárias para o cultivo de frutas, vegetais e ervas aromáticas medicinais, apoiadas por organizações de justiça alimentar, serviram não apenas como locais de cultivo de alimentos saudáveis, mas também como locais de educação de jovens e refúgios para mulheres atravessando momentos de dificuldade devido à perda de emprego ou violência doméstica.

Conectando injustiças

Em ambas as cidades, há um movimento crescente para articular as lutas por justiça que dizem respeito a diferentes partes do sistema alimentar – por exemplo, conectando debates sobre pobreza alimentar e desertos alimentares urbanos a debates sobre agroecologia e produção localizada de alimentos. Talvez a escala circuncrita da "cidade" tenha tornado essas conexões mais evidentes e gerenciáveis. O conceito de territórios alimentares rompe fronteiras e desafia as lógicas mercantilistas que desconectam produtores e consumidores e diluem as lutas por justiça que os unem. Organizações da sociedade civil e iniciativas comunitárias articuladas através de redes relativamente informais têm feito incursões para quebrar essas fronteiras e avançar com visões transversais de justiça no sistema alimentar.

Solidaridades como motores de mudança

Em ambas as cidades, as redes para a justiça alimentar têm sido impulsionadas por uma forte onda de solidariedade que se intensificou durante a pandemia. Em Brighton, a solidariedade expressa um sentimento de responsabilidade cívica e moral por cidadãoes organizados para apoiar os necessitados e é possibilitada por estruturas municipais que disponibilizam recursos e outras formas de apoio. No Rio de Janeiro, a solidariedade é uma forma de resistência coletiva (moldada por identidades de classe, gênero e raça) contra a intensificação da opressão e da violência. Entender as diferenças nestas manifestações de solidariedade é importante para pensar possíveis trajetórias de transição.

Caminhos para transições justas

Em suma, estes diálogos e intercâmbios indicam que, para alavancar transições alimentares justas, não se trata apenas de consertar falhas do sistema atual num esforço para "reconstruir melhor". Trata-se sim de enveredar por caminhos essencialmente distintos, que reformulem o conceito de alimento e as relações entre sujeitas e sujeitos do sistema alimentar. Em ambas as cidades se identificou um papel importante para as organizações e movimentos da sociedade civil na união das lutas para impulsionar a mudança. Existem, porém, especificidades contextuais nas visões sobre o papel do Estado como facilitador dessas transições. Por fim, apesar do pessimismo prevalente nos diagnósticos feitos sobre o sistema alimentar atual, em suas dimensões sociais e ecológicas, as solidariedades que se intensificaram nos últimos tempos despoletaram um sentimento de esperança sobre a possibilidade de criar alternativas ao sistema dominante, alternativas estas que estão já sendo tecidas a partir da base.